Era o ano de 1968, o carinho na família andava escasso. Por acaso, muito depois, foi descoberto que isso era o cotidiano e não um simples momento, um esquecimento, ou excesso de ocupação. Era negligência mesmo. Por falta de educação afetiva, por mero desconhecimento do que seja carinho ou pelo motivo que fosse. O fato é que as demonstrações de amor não aconteciam.
A mãe sempre precisando entregar mais uma trouxa de roupas para a patroa. O pai sempre com os pés muito cansados da caminhada do dia, em troca do sustento vital da família. O que tinha pra oferecer era a consciência do dever cumprido com integridade e a educação em valores que se perderiam no emaranhado das lutas diárias ou se consolidariam numa voluntária aceitação do certo porque é certo sem muitas perguntas.
O fato é que carinho não acontecia.
Boa noite, Cinderela! Princesa do Sílvio Santos à meia noite.
Acordar entre o casal que sabia beijar a testa e o rosto, acariciar os cabelos, calçar sandalhinhas de princesa e fingir que aquele elemento estranho em suas mãos era um brinquedo que precisa ser escondido de todos pra não se perder o carinho que era tão escasso. Aos 4 anos não se sabe ainda o que é certo e o que é errado. Espera-se que mamãe diga. Mas mamãe está ocupada! Espera-se que dindinha não finja que viu. Mas dindinha precisa fazer o café...
Eram semanas inteiras num brincar de casinha que preenchiam as manhãs. E as mãozinhas pequeninas aprenderam rápido o vai e vem que iria garantir mais um abraço, mais um afago, uma palavra doce e cedo constatou que sempre teria que lutar pra que o carinho viesse.
Onde estava mamãe enquanto eu fazia bolinhos de areia pra dindinho marido?
Conversando com a vizinha ou armando um barraco pra vender segredos alheios?
Meus olhos viram, minhas mãos tocaram e o meu coração chorou muitas vezes enquanto eu crescia, ardia dentro de mim esse segredo,como uma bomba querendo explodir.
Hoje, ouço as notícias sobre pedofilia e me entristeço.
As famílias não imaginam que o maior inimigo está por perto, marcando como uma tatuagem o coraçãozinho dos seus pequeninos.
A alma grita revoltada por justiça, o peito explode, as mãos tremem.
Onde está a mamãe que não ouve quando eu grito?
Meus olhos viram, meu coração sentiu!
Nenhum comentário:
Postar um comentário